quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Leis do mercado são leis da selva?


Por mais que se argumente e se mostre as ineficiências da intervenção estatal e a superioridade econômica do capitalismo, ainda assim as doutrinas do intervencionismo e do socialismo levam vantagem ao apelar ao senso ético que existe em cada um. Não porque sejam de fato moralmente superiores, mas porque são vistas dessa forma. E enquanto o forem, não há índice de pobreza ou cifra de mortos que mudará a opinião pública. 

A oposição ao capitalismo foi muito bem sucedida em pintá-lo como um sistema baseado no egoísmo, no qual indivíduos antissociais são induzidos a competir e agir de forma predatória, numa verdadeira luta de todos contra todos em que os poderosos ditam as regras e os fracos não têm vez. Homem primata, capitalismo selvagem. No sistema de mercado, imperaria a "lei da selva" ou "lei do mais forte". Suas alternativas, por outro lado, projetam a ideia de um mundo mais solidário, fraterno e menos competitivo, no qual cada um tem sua chance e, mesmo se falhar, encontra algum amparo.

Para piorar as coisas, certos defensores do capitalismo não só aceitam tal descrição como se orgulham dela. O homem, dizem, é egoísta por natureza e tem mais é que competir; só os fortes sobrevivem — e o resto, bem... azar deles. Quero, neste artigo, mostrar como essa visão está completamente equivocada. A lei do mercado é oposta à lei da selva.

Princípios opostos
Comecemos com uma descrição da vida sob a lei da selva. Na selva, os recursos são escassos, e nada é de ninguém. Se quero algo, pego. Se alguém mais quiser a mesma coisa, brigamos; só um será bem-sucedido. Tudo o que um consegue para si ou foi tirado de alguém ou privou alguém mais de tê-lo. Desavenças resolvem-se pela violência; os vencedores ficam com tudo e os perdedores perecem. Uma árvore deu frutos; quero-os para mim, você também. Lutamos, eu venço, fico com a árvore e ainda faço churrasco do seu cadáver; game over.  Quem é menos capaz — menos forte ou menos astuto — dança.

Nesse ambiente, o foco de todos os indivíduos é no consumo. O ambiente é muito incerto para que alguém se dedique a projetos de longo prazo. Todas as associações são frágeis. Os indivíduos veem uns aos outros como inimigos, competidores potenciais. Fora da tribo ou do clã sanguíneo, vive-se em guerra.

Agora pensemos no mercado. No mercado, os recursos também são escassos, mas cada coisa tem um dono. A árvore e seus frutos são, por direito, de alguém. Disso decorre que, se eu quiser um dos frutos, tenho que oferecer algo em troca ao dono atual. E essa minha oferta tem que ser considerada vantajosa ao dono dos frutos.  Em outras palavras: cada um, para alcançar seus próprios objetivos, tem que ajudar os demais a alcançar os seus. Parece injusto com os que não têm propriedade? Mas existem duas propriedades que todo mundo tem, e que são as mais valiosas de todas: sua mente e seu corpo, com os quais se trabalha. "Dê-me alguns dos seus abacates que eu te ajudo a tirar uma pedra da sua caverna". Civilizações nascem assim.

O foco na selva, como foi dito, é no consumo: comer para viver um dia a mais. No mercado, embora o objetivo final ainda seja o consumo, o foco é na produção: trocando uns com os outros, produzimos mais e ficamos todos melhores. Cada um tem maior quantidade de bens à sua disposição do que teria se não trocasse com os demais. Se na selva o próximo é um rival no consumo, no mercado ele é um potencial parceiro na produção. Na selva, o encontro com um desconhecido traz consigo um impasse ameaçador: "O que posso tirar dele e o que ele pode tirar de mim?" — duas alternativas excludentes. No mercado, o mesmo encontro levanta uma outra pergunta: "O que posso fazer por ele e o que ele pode fazer por mim?" — possibilidades que se concretizam simultaneamente.

Uma famosa tirinha narra a história aparentemente real das renas na ilha St. Matthew. As renas, animais irracionais, viviam sob a lei da selva. Para elas, o campo de líquen era um vasto campo de consumo; e quem não consumisse, ficaria com menos. Por isso comeram e se reproduziram desenfreadamente até extinguir sua própria fonte de sustento. Para os homens, supondo que tivéssemos a mesma dieta das renas, o campo de líquen, dividido em lotes, representaria oportunidades de produção e de cultivo. Posso arrasar meu campo em uma semana, consumindo-o completamente, ou posso restringir um pouco meu consumo presente, trabalhar no campo, e garantir o sustento duradouro. E quem não tem um campo de líquen, morre de fome? Não, pois nem só de líquen vive o homem! Todo homem é dono de sua força de trabalho, e pode prestar serviços a qualquer outro: ajudando a cultivar um campo, a construir uma casa, transportando mercadorias, fazendo freelas de design gráfico etc. Essa divisão das tarefas gera um ganho para a sociedade como um todo, pois a produtividade de cada trabalhador especializado é muito maior do que seria se cada um tivesse que fazer um pouco de tudo para si mesmo.

A lei do mercado é a lei do benefício mútuo. Para um subir, precisa ajudar outro a subir. É o exato oposto da lei da selva, em que o ganho de um vem em detrimento do outro. Como os desejos de todos são harmonizados, torna-se possível pensar no longo prazo. Na selva, só existe o presente; amanhã alguém pode roubar a caça que você tanto se esforçou para capturar. No mercado, curto e longo prazo se equilibram, cada um adiantando ou postergando o consumo de acordo com seu melhor julgamento.

Analogias insustentáveis
Com o que foi exposto, vemos como uma das principais relações da selva, a entre presa e caçador, simplesmente não existe no mercado. A vida do consumidor melhora ao comprar os bens do produtor; e é por isso mesmo que ele compra. A vida do empregado está melhor graças à vaga oferecida pelo empregador; e é por isso que ele aceita o emprego. A vida do empregador, por sua vez, também está melhor graças aos serviços do empregado. Ninguém é caçador e ninguém é presa nesse processo; todos cooperam.

Mas espere um pouco: sempre ouvimos dizer que o traço principal do mercado é a concorrência. E numa concorrência, um ganha e outro perde, exatamente como ocorre na concorrência selvagem. Quando uma onça caça uma anta, a onça mais fraquinha passa fome, morre antes e se reproduz menos. Quando uma empresa lança um produto de sucesso, outras perdem vendas, demitem funcionários, fecham as portas etc. É a lei da selva, ou não é?
Todo mundo sabe que no mercado existe competição acirrada. Ela é uma consequência, e não um princípio, de sua estrutura organizacional, isto é, do respeito à propriedade privada que resulta na necessidade de se ajudar os outros para se ser ajudado (daí o equívoco de se definir o mercado primariamente pela concorrência, fenômeno que ocorre em todo tipo de ordenamento social e institucional).

A concorrência de mercado tem a mesma origem da concorrência da selva: a escassez. A diferença entre elas, contudo, é significativa: na selva, compete-se pelo consumo dos recursos disponíveis. No mercado, compete-se para oferecer o melhor ao resto da sociedade. O que é produzido não é o bastante para satisfazer plenamente a demanda de todos os consumidores (em outras palavras, as pessoas têm renda e tempo limitados para gastar). Por esse motivo, os consumidores têm que exercitar certa seletividade em seu consumo: seu dinheiro e seu tempo vão para aquilo que melhor satisfizer seus desejos. Além disso, os produtores (e lembrem-se: produtores e consumidores são as mesmas pessoas) não são oniscientes, e não sabem perfeitamente o que os consumidores querem; suas escolhas e decisões sempre envolvem uma aposta que pode dar errado.

Os que melhor se adequarem à demanda dos consumidores receberão destes os recursos necessários para sustentar sua atividade. Os menos eficientes receberão recursos insuficientes e precisarão encontrar outro meio de se sustentar; isto é, procurar outra maneira de servir aos demais.

Nesse processo de perdas e ganhos, ocorre que uma pessoa, que estava empenhada em servir às demandas dos demais de um modo específico pode perder os consumidores que julgava "possuir". É só pensar no ocaso da maioria dos técnicos de vitrola na virada dos anos 1980 para os 1990, ou dos funcionários de uma fábrica nacional cuja competição com empresas chinesas tornou obsoleta. Por mais sofrida que essa transição possa ser, o próprio envolvido, se tiver uma correta leitura do que se passa, concordará que seu desemprego temporário é benéfico: "Minha atividade não usa os recursos disponíveis para melhor servir às demais pessoas. Quero ser remunerado por efetivamente servir e ajudar os outros ou quero tirar deles meu sustento sem lhes oferecer algo equivalente em troca?". Esse é o dilema: o dilema entre pautar-se pela lei da cooperação mútua (o que eventualmente requer sacrifícios) e a tentação de impor a lei da selva, ou seja, de impor que os outros te sirvam sem lhes oferecer uma contrapartida.

Não fosse por esse aspecto difícil do processo de mercado (os prejuízos de quem não se adequa à demanda e portanto obriga mudanças dolorosas de percurso), estaríamos todos muito mais pobres. Imaginem um mundo em que a remuneração de cada um não tivesse nada a ver com o quanto essa pessoa contribui para a vida alheia. O aparente ganho de alguns (que teriam seus empregos garantidos independentemente da demanda) resultaria na perda de todos, já que a sociedade estaria globalmente mais pobre: as necessidades humanas não dariam mais a finalidade à atividade produtiva.

Inclusão natural
A seleção natural elimina os indivíduos menos aptos. A seleção do mercado, igualmente não planejada (embora, diferentemente da seleção natural, fruto de ações humanas), elimina apenas ideias erradas sobre como servir às demandas dos demais. Embora isso possa trazer algum sofrimento para os indivíduos que apostaram nessas ideias, ela é, no longo prazo, boa inclusive para eles: uma sociedade mais rica e com mais oportunidades de criação de valor é boa para todos e é a única capaz de sustentar mesmo os que têm menos a contribuir. Do ponto de vista dos indivíduos no mercado, faz mais sentido falar de inclusão natural. Um indivíduo bem-sucedido beneficia os demais, ou melhor: seu sucesso só ocorre porque ele os beneficia. E embora possa ser difícil competir com ele na exata atividade que ele desempenha, enquanto houver demandas humanas não atendidas haverá campo aberto para que mais pessoas trabalhem e ajudem a satisfazê-las (e quando não houver mais demandas humanas não atendidas também não haverá mais motivo para trabalhar ou procurar emprego).

São apenas a afluência e a produtividade que a lei do mercado proporciona que tornam viável que um indivíduo sustente a si mesmo durante um período de desemprego, ou que seus parentes e amigos possam sustentá-lo se necessário. Nesse sentido ,aliás, cumpre notar que, na sociedade de mercado, mesmo aqueles realmente incapazes de produzir e trocar com os demais (os muito doentes, muito idosos, seriamente deficientes etc.) podem ser sustentados. Na lei da selva seriam os primeiros na fila do descarte, sacrificados ao imperativo de sobrevivência do clã. Hitler estava coberto de razão ao apontar que a sociedade liberal que ele tanto odiava permitira a sobrevivência de inválidos, deficientes e "não aptos" em geral; não aptos — é preciso frisar o ponto — à lei da selva; no mundo capitalista liberal, sua sobrevivência não apresentava problema algum.

O mercado, assim, é a antisselva. Se na selva impera a inimizade e a seleção natural, no mercado vigora a cooperação universal e a criação de oportunidades até mesmo para os menos favorecidos. Na selva uma pessoa a mais é mais uma boca para alimentar; no mercado, é mais uma potencial criadora de valor. A selva é o consumo autônomo e voraz dos recursos escassos; o mercado é o uso dos mesmos recursos para a produção conjunta, e na qual o recurso mais valioso de todos se faz valer: a inteligência humana. Não há nada de "selvagem" no capitalismo; e é justamente sua destruição gradual que pode nos levar de volta à guerra de todos contra todos da lei da selva.

Fonte: mises.org

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